sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Melancolia e a crítica da crítica

Um amigo discordou da minha opinião sobre o filme "Melancolia" (ver comentário em Filmes de 2011). Achei que valia a pena trazer esta discussão para uma nova entrada no blog. Se você, caro leitor, concorda, discorda ou muito pelo contrário, meta também seu dedo neste umbigo. Refletindo, conhecemos melhor o mundo e a nós mesmos.

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Meu caro Pedro,

Adorei o seu comentário. É bom ouvir outras opiniões para reavaliar as nossas (seja para alterá-las ou não). No caso de “Melancolia”, você não me convenceu: continuo achando um filme menor do Lars von Trier. Concordo que a nudez platinada da Kirsten Dunst seja plasticamente bela. Embora não tenha entendido muita coisa, esta parte – a conexão da personagem Justine com o planeta Melancolia – eu entendi. Vou reformular minha afirmação: a cena é sem importância para a compreensão desta relação intensa entre Justine e o planeta Melancolia. E, justamente porque a cena não é necessária para esta compreensão, acho que há um quê de exercício de poder do diretor. Eu não disse que isso é ruim. Mas quis dizer (com uma dose de sarcasmo) que diretores “cults” conseguem colocar estrelas de cinema em situações vulneráveis graças ao poder natural que exercem. Expor sua nudez para milhões de espectadores é, na minha opinião, colocar-se em situação de vulnerabilidade. Ao menos pelos códigos vigentes (não somos silvícolas). 

Gostaria de discutir a impressão que tenho de que von Trier trata as mulheres sempre como forças da natureza. Em todos os filmes a que assisti dele, a mulher está no centro da história, movida a emoções, enquanto os homens exibem um verniz mais racional. Peguemos como exemplos os personagens de Dunst e de Kiefer Sutherland em “Melancolia”, e de Charlotte Gainsbourg e de Willem Dafoe em “Anticristo”. A natureza (que podemos interpretar como destino em algumas situações) é incontrolável, é “a igreja do diabo”, e só as mulheres entendem isso. Os homens tentam controlar a natureza e as ações humanas, procuram justificativas para seus atos (David Morse em “Dançando no Escuro” e Paul Bettany em “Dogville”), e explicações científicas ou terapêuticas para as coisas (Willem Dafoe em “Anticristo” e Kiefer Sutherland em “Melancolia”). As mulheres compreendem a natureza, “filiam-se” a ela, mas não compreendem os homens (entendidos como toda a humanidade em filmes como Dogville e Manderlay). 

Esta representação de força da natureza não está presente em todos os personagens femininos, é claro. Há aqueles que cumprem a mesma função dos homens nos filmes, ou seja, representam os vícios da humanidade. Mas as estrelas dos filmes de von Trier não são mulheres comuns, são alegorias. Justine (Dunst) não foge à regra: ela pressente o fim do mundo e, simbolicamente, se entrega ao destino na cena em que se deita nua à luz azulada de Melancolia. Enquanto isso, seu cunhado (Sutherland) tenta explicar cientificamente o inexplicável e, mesmo diante da iminente tragédia, se preocupa com as aparências e o dinheiro.

Feita esta digressão, retorno para um ponto impalpável: o da sensação provocada pela arte. Há obras que nos cativam e obras não nos emocionam. Nem sempre este efeito está relacionado à qualidade do trabalho do artista. O momento do espectador (leitor etc.) é fundamental. Neste “momento do espectador” entra também tudo o que ele consumiu anteriormente, inclusive – e principalmente, talvez – outras obras do mesmo autor. Como se pode depreender dos meus dois parágrafos anteriores, meu entendimento de “Melancolia” tem tudo a ver com o que eu entendo do que Lars von Trier vem tentando dizer em seus trabalhos. Justamente no cinema autoral é que acho mais difícil escapar a este percurso. Fosse apenas um diretor a soldo e não o escritor de seus roteiros, a comparação se daria em outro nível (no da linguagem fílmica, por exemplo).

É, de certa forma, injusto comparar “Caim” com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” ou “As Intermitências da Morte” com “Ensaio sobre a Cegueira” (como eu já fiz - ver http://eduardoviana.multiply.com/reviews/item/14), mas acho inescapável. Nossa compreensão do mundo é formada a partir das influências que recebemos. Assim, nossa interpretação das obras de arte também será influenciada pelas obras que consumimos anteriormente.

Um forte abraço,
Eduardo

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P.s.: O uso do verbo "consumir" não quer dar à Arte um valor utilitário, de objeto de consumo. A melhor palavra a ser usada talvez fosse "fruir", mas acho um vocábulo muito feio. Usei "consumir" como síntese de "assistir", "ler", "ouvir", "ver" e o que mais servir para a interação de uma dada pessoa com uma dada obra de arte.