segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Prezado passageiro

"Prezado cliente, estamos apenas aguardando a liberação da sinalização" - diz o condutor do metrô. Por quê? A sinalização está presa? Algumas coisas que se dizem por aí simplesmente não fazem sentido. O certo é que o condutor esteja a esperar a sinalização de que o trânsito foi liberado, que ele pode seguir com seu comboio. Entendemos o que ele quis dizer, é claro, mas por que não dizê-lo direito? O estranho é que é uma frase padrão: todos os condutores do metrô do Rio de Janeiro falam isso. Ou seja, alguém escreveu a frase para que ela seja dita ou, se foi obra da criatividade de algum maquinista, alguém - que deveria estar cuidando das "frases padrões" - deixou que ficasse assim.

Outra coisa que me intriga é o "apenas". Por que apenas? Alguém poderia achar que o trem está parado porque esquadrões anti-bombas procuram por artefatos terroristas, como se estivéssemos no metrô londrino em tempos de ameaças do IRA?

"Prezado cliente, estamos aguardando a liberação do tráfego" estava de bom tamanho. Sem "apenas" e liberando o que realmente precisa ser liberado. Porque o sinal (ou a sinalização, para ficar mais comprido) está lá, totalmente livre para indicar se o maquinista pode levar seu veículo adiante ou não.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Da iniciação à angústia do leitor

Contava ainda menos de 10 anos quando ganhei de uma tia uma caixa grande. Crianças gostam de brinquedos grandes. Abri animado. Curioso. Mas só saiu papel lá de dentro. Caixas dentro de caixas, talvez. Lá no fundo, um pequeno livro cuja estranha história falava de uma galinha. Estranha mas interessante. E adorei “A vida íntima de Laura”.

Vovô viu a uva. Eu não sou tão velho assim, mas fui alfabetizado com frases como esta. Ivo, vovó, essas pessoas estavam no meu livro do pré-primário. O personagem principal era um menino chamado Davi, que sabia empinar pipa, coisa que eu invejava em Davi, pois nunca fui muito bom nisso.

No curso de alfabetização, lembro de um dia em que cada criança tinha que ler um livro por ela mesma escolhido da biblioteca de livros infantis da escola. Talvez fosse uma espécie de “hora da leitura”. Não era para ler em voz alta, para discutir, para ser sabatinado, testado, nada. Era só por diversão mesmo. Meu livro contava a história de um urso, de quem não lembro o nome, mas acho que me lembro do desenho. Acredito que li mais de uma vez e achei muito divertido.

No ano seguinte, na nova escola, tínhamos um livro em papel-jornal com menos desenhos e muitas histórias. Tínhamos que ler os textos em voz alta e, em geral, meus colegas não gostavam muito disso. Mas eu me amarrava e meio que disputava com uma menina o posto de “melhor leitor da classe”. Também por esta época tivemos que ler uma obra chamada “Lúcia já vou indo”. Tinha pouco texto para os meus ávidos olhos de leitor iniciado e, assim, cansei um pouco da literatura infantil. Passei a devorar gibis, mas ainda assaltava a mala de velhos romances infanto-juvenis do meu pai. O marujo Simbad, Marcelino Pão e Vinho, João que Chora e João que Ri não tinham nada a ver com a minha infância. Ninguém mais escrevia livros infantis como a Condessa de Ségur. Mesmo assim, meus irmãos e eu degustamos todos ou quase todos os livros da mala.

Aos dez anos de idade, uma obra infanto-juvenil mudou minha vida. “O gênio do crime”, com sua trama detetivesca, me fez querer voltar à literatura com mais vontade. Não larguei os quadrinhos, mas emprestei vários Monteiros Lobatos de umas primas, li uns Júlios Vernes de outro primo, freqüentei a feira de livros de perto de casa, tracei uma edição de “Helena” e outra de “Amadis de Gaula” da casa dos meus avós. Fui apresentado ao ladrão de casaca Arsène Lupin e ao playboy Irving Le Roy por meu avô paterno, que os resgatou do incêndio para meu gáudio. Minha querida Carmem, passadeira e paciente cuidadora eventual das três crianças lá de casa, emprestou-me “O escaravelho do diabo”, me apresentando à série Vagalume quando eu tinha 11 anos. Mais ou menos pela mesma época, uma tia veio de João Pessoa para o natal familiar com uma coleção de livros de Lígia Bojunga Nunes. Um livro diferente para cada sobrinho. Virei fã.

Depois, foi começar a ler os romances da estante da minha mãe. Coisa de gente grande. Alguns, tive de largar para só voltar a ler anos mais tarde. Associei-me a bibliotecas, mas não as freqüento tanto assim. Compro, ganho, dou, tomo emprestado e empresto livros. De ficção e não-ficção.

Mas leio devagar. Mais lentamente do que gostaria, já que há muitos livros bons por serem lidos. A angústia do leitor é saber que nunca conseguirá ler tudo o que desejaria. O leitor é um masoquista: quanto mais lê, quanto mais prazer tira da leitura, mais esta angústia do tempo finito lhe aperta o peito.

terça-feira, 31 de julho de 2012

A vaidade da diferença

Sou contra o orgulho wasp, o orgulho gay, o orgulho negro, o orgulho judeu e qualquer outra forma de altanaria que se preocupe em ressaltar as diferenças. Mas sou totalmente a favor da falta de vergonha. Falta de vergonha de ser negro, branco, mulato, cafuzo, mameluco, amarelo, albino ou detentor de qualquer configuração genética que defina a pigmentação da pele ou a ausência dela. Falta de vergonha de ser homem, mulher, gay ou optante de qualquer preferência sexual e afetiva. Falta de vergonha de ser judeu, cristão, muçulmano, budista ou possuidor de qualquer tipo de crença ou não-crença religiosa. Sou a favor de que nos vejamos como humanos simplesmente; indivíduos de uma mesma espécie, a qual ganha muito mais ao irmanar-se em suas semelhanças do que ao brigar por suas dissimilidades.

domingo, 27 de maio de 2012

Pós-pago, pré-ferrado

Todos sabem da minha resistência a telefones celulares, estes aparelhinhos que fazem com que qualquer um te encontre em qualquer lugar, soam em salas de cinema e em reuniões de trabalho, e te obrigam a participar das conversas mais íntimas do estranho que está ao teu lado no ônibus. Pois bem, minha mulher tinha um telefone celular pré-pago simplezinho. Daquele que não tira fotos, não grava música, não toca rádio. Só serve para telefonar mesmo. Um dia resolveu trocar para um aparelho melhorzinho. Aproveitou para mudar o plano também. Trocou o pré-pago que lhe custava uns R$ 20,00 por mês por um pós-pago. A primeira conta veio em R$ 800,00. Erro da operadora, é claro. Mandaram uma segunda conta. Ainda errada. Apelamos para a Anatel e a empresa de telecom saiu pela tangente dizendo que "por ela ser uma boa cliente, concederiam um desconto na fatura daquele mês". Pois é, caradura não tem limites...

Eu, que estava livre dessas maquininhas do diabo, longe das microondas na minha orelha, herdei o celular simplezinho da minha mulher. Do final do ano passado para cá, creio só tê-lo usado umas três vezes. Sempre me assustando que um telefonema de 20 segundos custe quase R$ 2,00. Enfim, continuei creditando (e não usando) uns R$ 10,00 por mês só para que, vez ou outra, minha mulher pudesse me achar no caminho do trabalho para casa ou para o cinema. Cheguei a ficar quase dois meses sem colocar crédito, quando saímos de férias.

Outro dia fui com minha companheira numa dessas lojas de telefone celular. Queríamos saber quanto custaria para incluir o meu celular no plano dela. Dizem que esses pacotes são mais vantajosos, não é mesmo? Coisa nenhuma. O preço mais barato que me ofereceram foi de R$ 60,00.

Essa história de pós-pago é muito esquisita para mim. A gente paga depois que fecha o mês, mas não necessariamente pelo que consome. O plano me oferecia sei lá quantas centenas de minutos (a franquia de R$ 60,00), mas eu não usaria nem um décimo disso. Já acho uma roubada os R$ 10,00 que eu pago no pré-pago só para manter a linha ativa, que dirá R$ 60,00! Continuei no pré-pago, mas ainda assim pensando que vantagem afinal existe em carregar esse aparelhinho do demônio para cima e para baixo, com medo que ele caia do bolso ou seja esquecido em algum lugar.

sábado, 28 de abril de 2012

De repente

De repente era tudo muito simples,
como, aliás, sempre foi
e nós não queríamos ver.
De repente do papel saiu a rima
e da grama saltou o canto,
o profano tornou-se santo,
e éramos só nós dois
e éramos tantos.
De repente da vida fez-se o encanto
e o riso leve calou o pranto
e a sua última lágrima tornou-se vento.
De repente do seu beijo fez-se o momento,
do seu abraço fez-se o alento
e o seu olhar foi meu recanto.
De repente da areia fina fez-se o segundo,
do seu corpo fez-se o meu mundo
e da palavra fez sentimento.
De repente o verso foi mais profundo,
da rocha fez-se acalanto
e da dor fez-se o rebento.
De repente fez-se o encontro,
e éramos todas as frases,
e éramos um só ponto.

[13.07.1994]

sábado, 24 de março de 2012

entre trópicos 46º05'

Termina amanhã, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, a exposição entre trópicos 46º05'. Com curadoria da cubana Ibis Hernández Abascal e da brasileira Marisa Flórido Cesar, a mostra propõe um diálogo entre artistas plásticos contemporâneos de Brasil e Cuba. Esta relação se dá por ideias e/ou por instrumentos/ferramentas (as caixas de música de Glenda León e Cadu; os jogos de luz e sombra de Regina Silveira e Duvier del Lago; etc.).

Às vezes os diálogos são sutis, outras vezes são um convite a um bate-papo direto e franco. É o que conseguem o pernambucano Paulo Bruscky e o havanês Lázaro Saavedra, com seus irônicos e críticos bric-à-bracs (como chamou Bruscky): composições em vários suportes, tais como vídeos, poemas, desenhos e fotografias.

As obras em exposição trazem um olhar crítico sobre o mundo, sem serem panfletárias. São belas peças, que revelam inteligência e incomodismo. Eu, que não entendo nada de arte, gostei e recomendo.

A Caixa Cultural fica na Av. Almirante Barroso, 25, Centro.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

"Senhorita Júlia" e as estranhas reações do público de teatro

foto de divulgação
Há poucas semanas fui assistir à peça "A propósito de Senhorita Júlia", adaptação de José Almino e Walter Lima Jr. para o clássico "Senhorita Júlia" de August Strindberg. Posso estar enganado, mas, no meu entender, trata-se de um drama. Creio que, ao transpor a história da Suécia do século XIX para o Brasil do século XXI, não se tentou fazer uma paródia da obra. Não acho que houve intenção satírica. Mas devo estar enganado, pois o público se escangalhava de rir. E aplaudiu de pé! A questão é: a plateia aplaudiu exatamente o quê? Na minha imodesta opinião, não exatamente o drama que a peça é, mas a comédia que ela pensou ter visto.

A história se passa na cozinha de uma casa de classe alta. A filha riquinha do dono da casa flerta com o motorista do pai, um sujeito mais ou menos articulado, mais ou menos ambicioso, e mais ou menos ressentido. O rapaz, que é noivo da cozinheira, deixa-se envolver. É um enredo de conflitos sexuais e de classes. Como era o original de Strindberg.

Ao transporem a intriga, Almino e Lima Jr. transformaram o dramaturgo sueco em uma espécie de Nelson Rodrigues. Parece-me que a pretendida transposição para o século XXI não foi de toda feliz, mas, se tirarmos algumas poucas referências aos dias atuais, poderíamos encaixá-la muito bem nos anos 1950. Concedo até que, assim como no trabalho de Nelson Rodrigues, a montagem tem sim um toque de humor. Mas, em geral, não de um humor satírico ou burlesco, e sim irônico. Diálogos irônicos, contudo, não costumam levar as pessoas às gargalhadas.

Supondo que o público achasse a montagem muito ruim, eu entenderia que ele risse, mas não que aplaudisse de pé. Supondo que achasse muito boa, eu entenderia que aplaudisse de pé, mas não que risse. As duas coisas juntas, para mim, não fazem sentido. Desta forma, só há duas conclusões possíveis: ou o púbico não compreendeu nada ou fui eu.

Independente da plateia ter entendido ou não, aplaudir - e de pé - é a coisa mais comum nos teatros cariocas. O que nos leva a imaginar que a nossa produção cultural é de primeiríssima qualidade; tão boa que fica difícil selecionar uma peça para ser ovacionada de pé, por isso aplaudimos todas. Isto ou o público tem medo de entristecer o elenco. Vai que esbarramos com um dos atores na praia, não é mesmo?

E tem mais: nem importa quem é o melhor ator ou atriz em cena, o negócio é aplaudir a "estrela global". Na boa: há ótimos artistas em cena que garantem o ganha-pão na TV Globo. Eles podem até ser os melhores em determinados espetáculos. Merecem nosso aplauso e nosso respeito. Mas não são os melhores sempre. Não mesmo. Se tiverem um pouco de autocrítica, devem até ficar constrangidos ao receberem mais apupos do que outros colegas com quem dividem o palco.

Enfim, acredito que temos uma produção cultural de muito bom nível. Mas lamento que fique difícil destacar o que é realmente bom do que é somente bom, bonzinho, ou mesmo razoável, se as pessoas tratam tudo como a sétima maravilha.

E não falei da peça: o enredo é bom, os atores são ótimos e a trilha sonora é muito - mas muito - fraquinha. Aplaudi sentado.

P.s.: Qualquer dia faço uma lista das peças de que mais gostei nos últimos 20 ou 30 anos. Das que mereceram ser aplaudidas de pé.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

II Guerra e a origem do mal

"Nada autoriza a ideia tão disseminada de que o passado humano foi bucólico, pastoril e pacífico. Há poucos séculos, matavam-se pessoas com base em superstições avalizadas pela hierarquia religiosa, a escravidão era oficial e apenas discordar da opinião vigente podia equivaler a uma sentença de morte."
[Steven Pinker, professor de psicologia de Harvard, em entrevista à revista Veja de 4 de janeiro de 2012]

Em setembro de 2010, escrevi uma resenha sobre o filme "A Fita Branca", de Michael Haneke, deixando de lado o argumento de alguns críticos sobre a formação do caráter da geração que criaria o nazismo alemão. Segundo tais críticos, Haneke desejava buscar em sua obra a origem do ódio que provocou o Holocausto.

Após ler a biografia da amante de Hitler – "A História Perdida de Eva Braun" –, comecei a considerar que tais críticos tinham razão. O Führer nasceu em uma família completamente desestruturada. Seu pai o espancava frequentemente e era de uma infidelidade doentia. Uma foto de Eva Braun no internato é assustadora: quase todas as crianças aparecem sujas, tristes e mal-vestidas. Segundo a autora, Angela Lambert, havia muita opressão à época. Essas crianças maltratadas poderiam mesmo vir a se tornar adultos cruéis como Himmler, Goebbels e outros figurões nazistas.

Crianças reprimidas do século XIX, que sofreram as humilhações impostas pelo Tratado de Versalhes quando jovens, e enfrentaram uma dura crise econômica quando adultas, tornaram-se, em parte, defensoras de um nacionalismo e de um racismo exacerbados.

Steven Pinker diz, em sua entrevista à Veja, que "no caso da Alemanha, é preciso observar que, por baixo da fina camada de verniz civilizatório da República de Weimar, o curto período democrático depois da I Guerra, fervia o nacionalismo retrógrado baseado na ideia da superioridade racial teutônica que descambaria no nazismo. Foi algo tão forte que apagou a noção do bem e do mal." Talvez a dificuldade de diferenciar o bem do mal tivesse origens ainda mais profundas, como aquelas mostradas no filme "A Fita Branca".

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Melancolia e a crítica da crítica

Um amigo discordou da minha opinião sobre o filme "Melancolia" (ver comentário em Filmes de 2011). Achei que valia a pena trazer esta discussão para uma nova entrada no blog. Se você, caro leitor, concorda, discorda ou muito pelo contrário, meta também seu dedo neste umbigo. Refletindo, conhecemos melhor o mundo e a nós mesmos.

***

Meu caro Pedro,

Adorei o seu comentário. É bom ouvir outras opiniões para reavaliar as nossas (seja para alterá-las ou não). No caso de “Melancolia”, você não me convenceu: continuo achando um filme menor do Lars von Trier. Concordo que a nudez platinada da Kirsten Dunst seja plasticamente bela. Embora não tenha entendido muita coisa, esta parte – a conexão da personagem Justine com o planeta Melancolia – eu entendi. Vou reformular minha afirmação: a cena é sem importância para a compreensão desta relação intensa entre Justine e o planeta Melancolia. E, justamente porque a cena não é necessária para esta compreensão, acho que há um quê de exercício de poder do diretor. Eu não disse que isso é ruim. Mas quis dizer (com uma dose de sarcasmo) que diretores “cults” conseguem colocar estrelas de cinema em situações vulneráveis graças ao poder natural que exercem. Expor sua nudez para milhões de espectadores é, na minha opinião, colocar-se em situação de vulnerabilidade. Ao menos pelos códigos vigentes (não somos silvícolas). 

Gostaria de discutir a impressão que tenho de que von Trier trata as mulheres sempre como forças da natureza. Em todos os filmes a que assisti dele, a mulher está no centro da história, movida a emoções, enquanto os homens exibem um verniz mais racional. Peguemos como exemplos os personagens de Dunst e de Kiefer Sutherland em “Melancolia”, e de Charlotte Gainsbourg e de Willem Dafoe em “Anticristo”. A natureza (que podemos interpretar como destino em algumas situações) é incontrolável, é “a igreja do diabo”, e só as mulheres entendem isso. Os homens tentam controlar a natureza e as ações humanas, procuram justificativas para seus atos (David Morse em “Dançando no Escuro” e Paul Bettany em “Dogville”), e explicações científicas ou terapêuticas para as coisas (Willem Dafoe em “Anticristo” e Kiefer Sutherland em “Melancolia”). As mulheres compreendem a natureza, “filiam-se” a ela, mas não compreendem os homens (entendidos como toda a humanidade em filmes como Dogville e Manderlay). 

Esta representação de força da natureza não está presente em todos os personagens femininos, é claro. Há aqueles que cumprem a mesma função dos homens nos filmes, ou seja, representam os vícios da humanidade. Mas as estrelas dos filmes de von Trier não são mulheres comuns, são alegorias. Justine (Dunst) não foge à regra: ela pressente o fim do mundo e, simbolicamente, se entrega ao destino na cena em que se deita nua à luz azulada de Melancolia. Enquanto isso, seu cunhado (Sutherland) tenta explicar cientificamente o inexplicável e, mesmo diante da iminente tragédia, se preocupa com as aparências e o dinheiro.

Feita esta digressão, retorno para um ponto impalpável: o da sensação provocada pela arte. Há obras que nos cativam e obras não nos emocionam. Nem sempre este efeito está relacionado à qualidade do trabalho do artista. O momento do espectador (leitor etc.) é fundamental. Neste “momento do espectador” entra também tudo o que ele consumiu anteriormente, inclusive – e principalmente, talvez – outras obras do mesmo autor. Como se pode depreender dos meus dois parágrafos anteriores, meu entendimento de “Melancolia” tem tudo a ver com o que eu entendo do que Lars von Trier vem tentando dizer em seus trabalhos. Justamente no cinema autoral é que acho mais difícil escapar a este percurso. Fosse apenas um diretor a soldo e não o escritor de seus roteiros, a comparação se daria em outro nível (no da linguagem fílmica, por exemplo).

É, de certa forma, injusto comparar “Caim” com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” ou “As Intermitências da Morte” com “Ensaio sobre a Cegueira” (como eu já fiz - ver http://eduardoviana.multiply.com/reviews/item/14), mas acho inescapável. Nossa compreensão do mundo é formada a partir das influências que recebemos. Assim, nossa interpretação das obras de arte também será influenciada pelas obras que consumimos anteriormente.

Um forte abraço,
Eduardo

***

P.s.: O uso do verbo "consumir" não quer dar à Arte um valor utilitário, de objeto de consumo. A melhor palavra a ser usada talvez fosse "fruir", mas acho um vocábulo muito feio. Usei "consumir" como síntese de "assistir", "ler", "ouvir", "ver" e o que mais servir para a interação de uma dada pessoa com uma dada obra de arte.